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A memória coletiva, devia ser, mas não é, um arquivo neutro onde se guardam factos e datas. É, pelo contrário, um campo de batalha permanente, onde o que se recorda e o que se esquece resulta de escolhas políticas, culturais e económicas. O passado não é uma paisagem imutável. O tempo pretérito é continuamente reescrito a partir das opções do poder e do pensamento dominante que a cada momento histórico se impõe no senso comum e que melhor serve os seus interesses. E é por isso que a disputa entre memória e esquecimento nunca é inocente e que atualmente se transformou numa luta que urge travar para que o revisionismo não se imponha à verdade histórica.
Conhecer é um ato de libertação que arma os cidadãos, tornando-os menos vulneráveis à moldagem da opinião pública e ao revisionismo histórico. Por outro lado, é essencial perceber quais os interesses e as finalidades de quem decide sobre a reescrita da história.
Oito décadas depois da manhã de 6 de agosto de 1945, Hiroshima continua a ser o símbolo maior da capacidade autodestrutiva da humanidade. No espaço de segundos, uma cidade inteira foi reduzida a cinzas, e dezenas de milhares de vidas desapareceram numa nuvem de fogo e silêncio. O desfecho do conflito estava desenhado, mas os EUA não se abstiveram de cometer a barbaridade que três dias depois repetiram sobre a cidade de Nagasaki.
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No entanto, a narrativa dominante tende a enquadrar estes acontecimentos como inevitáveis, quase naturais, parte de um desfecho histórico que teria poupado vidas ao acelerar o fim da guerra e, raramente, o mainstream refere quem foram os autores dos bombardeamentos. A justificação oficial, a ocidente, repete-se como uma espécie de mantra, abafando perguntas incómodas: Era mesmo necessário? Quais foram os cálculos estratégicos e geopolíticos que estiveram por trás da decisão? E por que motivo a memória de Hiroshima e Nagasaki raramente se cruza com a lembrança dos bombardeamentos convencionais, igualmente devastadores e, quiçá evitáveis, que arrasaram cidades como Dresden ou Tóquio?
Ao simplificar o acontecimento, a memória oficial apaga a responsabilidade política e moral. E este apagamento não é irrelevante: Sem memória crítica, a humanidade arrisca-se a normalizar a guerra, a vulgarizar a violência e premiar os autores desse ato desumano.
Também o colonialismo europeu é um território de memórias conflituosas e uma história, nem sempre bem contada, ou melhor, descrita pelos olhos dos colonizadores como uma missão civilizadora alicerçada na supremacia dos povos europeus e concretizada pela força das armas, mas que para os povos colonizados foi uma experiência de exploração, violência, racismo e epistemicídio. Situação que mesmo após os processos de descolonização se perpetuou sob a égide e as diferentes faces do neocolonialismo, do qual nem todos os povos colonizados se libertaram. O certo é que, nas últimas décadas, a tendência dominante continua a ser a do esquecimento seletivo e do branqueamento.
Em Portugal, por exemplo, o império é muitas vezes reduzido a episódios de exotismo e à branda nostalgia do imaginário colonial africano. Não se fala tanto da escravatura, dos massacres ou da guerra colonial que, até à revolução de Abril, vitimou milhares de jovens nas frentes de combate em África. A narrativa da lusofonia procura suavizar os traços mais duros dessa história e, há ainda quem tente justificar o colonialismo português com as teses do chamado luso-tropicalismo.
Esquecer e adaptar os factos, neste caso, é também uma forma de perpetuar uma versão unilateral da história. A memória não deve ser uma galeria de glórias, mas um espaço de responsabilização. Para que não subsistam dúvidas estas palavras não se destinam aos milhares e milhares de jovens portugueses que foram forçados a combater numa guerra que não era sua e na qual muitos milhares foram mortos.
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Outras memórias têm sido moldadas pelo presente, mas a história não mente. A OTAN fundada, como bloco militar defensivo, em 1949 integrou a ditadura portuguesa como um dos membros fundadores o que só se compreende face aos objetivos políticos desta organização que, como se sabe, tinha como principal finalidade o combate à expansão da influência soviética e uma suposta ameaça crescente de bolchevização do mundo.
Sendo assim e após a implosão da União Soviética, 26 de dezembro de 1991, e da anterior dissolução do bloco militar designado por Pacto de Varsóvia, em julho do mesmo ano, a OTAN deixou de fazer qualquer sentido como bloco militar.
As intervenções da OTAN na Jugoslávia, 1994 e 1999, no Afeganistão, em 2001 a 2021, no Iraque em 2004, na Líbia, em 2011, entre outros episódios de intervenção indireta, mas todos eles, veja-se, após a dissolução do Pacto de Varsóvia e da implosão da União Soviética. A partir do bombardeamento da Jugoslávia, a OTAN deixou cair o seu estatuto de bloco militar defensivo e assumiu-se como uma organização ofensiva ao serviço de interesses imperiais.
O que o mainstream transmite para a memória coletiva é uma narrativa de defesa da liberdade e da democracia, mas os seus objetivos e, particularmente, os efeitos reais das intervenções da OTAN foram devastadores para os países onde houve intervenção militar desta dita organização militar defensiva.
A memória oficial da OTAN é moldada pelo presente: enfatiza-se a ameaça externa, oculta-se o custo humano das guerras. E é neste jogo de esquecimento seletivo que se legitima a continuação da aliança, mesmo quando os resultados das suas ações são, no mínimo, discutíveis, bem assim como a sua existência.
Em Portugal, o caso da ditadura salazarista mostra bem como a memória é vulnerável à erosão do tempo e que, crescente representação institucional de forças populistas tem vindo a acelerar. No espaço de uma geração, a guerra colonial, a censura, a repressão política, a prisão, a tortura e o assassinato de opositores e a miséria que forçou centenas de milhares à emigração, foram sendo obliterados. Hoje, não é raro ouvir quem recorde a ditadura fascista como um tempo de ordem e tranquilidade e a difusão da ideia de que: antigamente é que era bom.
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Este branqueamento da história não é inocente, distorce a realidade e, por conseguinte, fragiliza a democracia. Quando às novas gerações lhes é sonegado o direito à informação e formação sobre a história da ditadura, a memória é apagada e abre-se o caminho para revisionismos perigosos. Portugal oscila, perigosamente, entre a nostalgia do império e a integração europeia, entre a memória da guerra colonial e o esquecimento das suas consequências sociais, entre a celebração popular do 25 de Abril e o risco de a reduzir a uma data protocolar, ou substituir a data fundacional da democracia portuguesa por um outro dia 25.
A disputa entre memória e esquecimento não é apenas um fenómeno natural da passagem do tempo: é também uma construção social deliberada. Os poderes instituídos têm interesse em moldar a memória coletiva. Reescrevem a história para legitimar o presente, ocultam responsabilidades, exaltam vitórias e reduzem derrotas a notas de rodapé.
Os instrumentos dessa manipulação são claros. O ensino, quando reduzido a programas mínimos e acríticos, transforma-se em veículo de amnésia organizada. A comunicação social, dominada por lógicas empresariais e agendas políticas, seleciona o que deve ser lembrado e o que deve ser apagado, reduzindo a complexidade a narrativas simplistas. E as redes sociais, com a sua velocidade e fragmentação, amplificam falsidades e revisionismos, transformando a mentira repetida em verdade partilhada.
O perigo não está apenas no esquecimento, mas na substituição da memória pela ficção conveniente. Quem controla a memória molda o futuro. É por isso que recordar não é um exercício nostálgico: é um ato político. Defender a memória crítica é defender a democracia contra a erosão lenta do revisionismo, é proteger a verdade contra a anestesia da mentira e é, sobretudo, escolher não entregar o futuro às mãos de quem se alimenta do esquecimento e do revisionismo histórico.
Ponta Delgada, 2 de setembro de 2025
Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 3 de setembro de 2025