sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Espelhos da (des)humanidade

imagem retirada da internet

O Mediterrâneo é, sempre foi, mais do que um mar. Este espaço marítimo foi berço de civilizações, comércio, guerra, encontro e fuga. Hoje, tornou-se numa ferida exposta no mundo ocidental. Nele convergem os escombros das guerras, o rasto das ditaduras, a pobreza gerada por décadas de saque económico e a violência das políticas externas ocidentais. É o mar onde naufraga diariamente uma certa ideia de Europa que se proclama guardiã dos direitos humanos, mas ergue muros, patrulha fronteiras, financia milícias e assiste, não como um cúmplice em silêncio, mas como mandante ativo, à morte de milhares de migrantes que tentam apenas sobreviver ao caos herdado do colonialismo e aos efeitos do neocolonialismo.

O Mediterrâneo é a metáfora perfeita da hipocrisia europeia: chama “crise” ao que ela própria produz e alimenta, chama “ameaça” aos que fogem das ameaças que semeou, chama “choque civilizacional” àquilo que é, na essência, um encontro desigual entre mundos violentados e um projeto de bem-estar construído sobre séculos de um colonialismo que teima em persistir sob formas de dependência neocolonial.

Um outro mar, o Atlântico, mais vasto e aparentemente mais pacífico, mas não menos gerador de conflitualidades, ou pelo menos de instrumento para alimentar projetos políticos e bélicos de um domínio hegemónico em ruínas. Foi no Atlântico que Portugal se habituou a ver a sua projeção marítima, ora como ponte, ora como eco de interesses que não são verdadeiramente seus. O Atlântico é a rota estratégica dos cabos submarinos, do tráfego energético, do posicionamento militar estado-unidense, das rotas comerciais que unem continentes e da crescente militarização que visa a defesa de projetos imperiais pouco recomendáveis e aos quais urge por termo, o espetro de uma guerra generalizada está desenhado, saibamos utilizar a diplomacia como instrumento nas relações internacionais e abandone-se, de uma vez por todas, a guerra. 

foto de Aníbal C. Pires
É nesse Atlântico que se situam as ilhas açorianas. O arquipélago é o ponto estratégico no xadrez geopolítico sobre o qual Portugal tem cada vez menos soberania. A base das Lajes, o posicionamento no Atlântico médio, os corredores militares e tecnológicos, tudo isso faz dos Açores um centro instrumental para Washington e Bruxelas, mas continua a ser uma periferia para Lisboa. A capital raramente percebe a dimensão do que tem entre mãos ou, se percebe, não tem sabido potenciar este ativo. Não como plataforma para a guerra, mas como suporte para a paz e cooperação e um ponto de encontro entre mundos. 

Portugal encontra-se entre estes dois mares, não só geográfica, mas histórica e politicamente.

Essa condição poderia ser potenciada, mas tem sido depreciada. Poderia ser ponte, mas tem sido, apenas, um posto avançado de interesses externos que o usam e descartam, consoante os contextos políticos e os proveitos para os poderes que alimentam a hegemonia ocidental.

Portugal nunca soube aproveitar este seu ativo natural e continua a ser mero espetador. Não pense o leitor que existe aqui algum saudosismo do colonialismo e do imperialismo português, nem se pense, ainda que por um instante, que defendo uma posição portuguesa mais interventiva no apoio a ações políticas de carácter bélico dos Estados Unidos e da OTAN, nada disso. A posição geográfica dos Açores, a meio caminho, entre o continente europeu e americano (Sul e Norte), a Macaronésia, mas também o continente africano, ou seja toda a bacia atlântica, conferem ao arquipélago uma centralidade que importaria valorizar. Mas o país insiste em posicionar-se como “aluno aplicado” da estratégia atlantista, no mau sentido da palavra, mesmo quando essa estratégia reforça desigualdades, alimenta conflitos e normaliza a guerra.

Veja-se como a pena corre, quando a deixamos ir sem controle para assuntos complexos, quiçá interessantes, mas que não faziam parte do meu propósito. Quando me sentei trazia comigo a ideia de abordar uma das condições humanas do nosso tempo: as migrações. Estou a meio caminho do fim do texto e ainda ando à deriva entre o Mediterrâneo e o Atlântico. Se bem que estes dois mares serviram e servem para a deslocação de pessoas, uns compulsivamente, outros por vontade própria, mas sempre em resultado da violência e de sistemas políticos e económicos predatórios. Foi assim com a escravatura, é-o agora com a guerra, com a pobreza e com o esgotamento das economias locais, entendidas aqui como regiões onde por diferentes motivos a fome e a negação de uma vida digna impelem cidadãos para percursos migratórios nos quais não há nenhum romantismo, apenas desespero. A maioria não são nómadas digitais, nem têm vistos gold.

imagem retirada da internet

Ao contrário do que tantas narrativas oficiais tendem a caraterizar, migrar não é escolha, migrar é uma fuga à morte. E não é uma sentença natural, inscrita no destino, mas fabricada por um sistema económico global que transforma regiões inteiras em zonas de extração, dependência e desespero. A Europa e os Estados Unidos, tão rápidos a proclamar valores e direitos, são igualmente rápidos a negar qualquer ligação entre o seu bem-estar e o sofrimento alheio. Fingem não perceber que cada barco que atravessa o Mediterrâneo com destino á costa europeia transporta, além de vidas, um inventário de responsabilidades históricas. Cada pessoa que atravessa a fronteira mexicana leva consigo as marcas de décadas de ingerência económica, militar e política.

O que impressiona não é apenas a dureza das trajetórias migratórias, mas a brutalidade crescente com que o Ocidente decide “defender-se” daqueles a quem chama ameaça. A Europa transformou as suas fronteiras em laboratórios de desumanização: centros de detenção, arame farpado, tecnologia de vigilância, drones, acordos com Estados-fantasma convertidos em canis humanos. A retórica política, ora sussurrada, ora gritada, tenta convencer-nos de que esta violência é necessária para preservar o nosso modo de vida. Mas ninguém diz, pelo menos com honestidade, que esse modo de vida é insustentável sem a destruição sistemática das economias do Sul global e sem a exploração barata, invisível e descartável de imigrantes que, uma vez cá dentro, são úteis, mas nunca bem-vindos.

Os Estados Unidos, que durante décadas se apresentaram como “nação de imigrantes”, fazem hoje da fronteira sul uma zona militarizada onde se testam tecnologias de exclusão dignas de ficção distópica. Muralhas, sensores térmicos, vigilância permanente, milícias privadas, a fronteira mexicana tornou-se palco de uma guerra não declarada contra civis desarmados. E, tal como na Europa, a violência é legitimada por discursos que classificam os migrantes como invasores, criminosos ou, uma ameaça cultural. 

imagem retirada da internet
O que me inquieta não é apenas a violência visível nas fronteiras, mas a perseguição crescente dentro dos próprios países de acolhimento. Na Europa multiplicam-se as leis que restringem direitos, as campanhas mediáticas que diabolizam comunidades inteiras, as agressões que passam impunes, os partidos que ascendem ao poder prometendo “limpar”, “repatriar”, “proteger” quem é “de cá”. Nos Estados Unidos, o clima é semelhante: criminalização, deportações massivas, exploração do trabalho, comunidades inteiras a viver na sombra, sem direitos ou voz. A xenofobia e o racismo, que se escondia sob capuzes, hoje desfila à luz do dia com uma arrogância triunfal.

Mas se observarmos com atenção, veremos que esta violência dirigida aos migrantes tem uma função precisa: desviar o olhar. A imagem do migrante é construída como sendo o inimigo externo para ocultar o verdadeiro inimigo interno, o modelo económico que precariza, empobrece e abandona a maioria da população. É mais fácil culpar quem chega do que enfrentar quem detém o poder. É mais fácil construir muros do que questionar o porquê de tantas pessoas quererem atravessá-los.

Talvez falte ainda a consciência plena de que o Mediterrâneo e o Atlântico não são apenas geografias: são espelhos onde nos vemos, ou deveríamos ver. São mares que transportam histórias que também são nossas. 

O que está em causa, no fundo, não são as migrações, mas a humanidade. E talvez seja esse o futuro que ainda nos resta: escolher entre a barbárie das fronteiras e a humanidade das pontes.

Ponta Delgada, 9 de dezembro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 10 de dezembro de 2025

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

à deriva

imagem retirada da internet

Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.





(...) Veja-se como a pena corre, quando a deixamos ir sem controle para assuntos complexos, quiçá interessantes, mas que não faziam parte do meu propósito. Quando me sentei trazia comigo a ideia de abordar uma das condições humanas do nosso tempo: as migrações. Estou a meio caminho do fim do texto e ainda ando à deriva entre o Mediterrâneo e o Atlântico. Se bem que estes dois mares serviram e servem para a deslocação de pessoas, uns compulsivamente, outros por vontade própria, mas sempre em resultado da violência e de sistemas políticos e económicos predatórios. Foi assim com a escravatura, é-o agora com a guerra, com a pobreza e com o esgotamento das economias locais, entendidas aqui como regiões onde por diferentes motivos a fome e a negação de uma vida digna impelem cidadãos para percursos migratórios nos quais não há nenhum romantismo, apenas desespero. A maioria não são nómadas digitais, nem têm vistos gold.

Ao contrário do que tantas narrativas oficiais tendem a caraterizar, migrar não é escolha, migrar é uma fuga à morte. E não é uma sentença natural, inscrita no destino, mas fabricada por um sistema económico global que transforma regiões inteiras em zonas de extração, dependência e desespero. A Europa e os Estados Unidos, tão rápidos a proclamar valores e direitos, são igualmente rápidos a negar qualquer ligação entre o seu bem-estar e o sofrimento alheio. Fingem não perceber que cada barco que atravessa o Mediterrâneo com destino á costa europeia transporta, além de vidas, um inventário de responsabilidades históricas. Cada pessoa que atravessa a fronteira mexicana leva consigo as marcas de décadas de ingerência económica, militar e política. (...)


sobre a imprescindibilidade do "bom" trabalhador

Li, há pouco, numa publicação no Facebook, um trabalhador que exprimia assim o seu posicionamento face às propostas de alteração ao Código de Trabalho, vulgo Pacote Laboral. Dizia então o trabalhador: “Um bom trabalhador não tem medo da reforma laboral!!!”

Pode também ser entendida como a autojustificação para não ter feito greve, mas é mais do que isso.

Esta afirmação denota uma ideia de imprescindibilidade, ou seja, isto nunca se vai aplicar a mim, pois o empregador e a empresa necessitam do meu trabalho e eu tenho um desempenho laboral reconhecido.

Esta ideia de imprescindibilidade alimenta-se, paradoxalmente, da própria lógica patronal que, enquanto valoriza essa dedicação, usa-a para quebrar a solidariedade coletiva, ou seja, a única força real que os trabalhadores têm quando enfrentam alterações profundas nas regras do jogo, como as constantes neste Pacote Laboral.

É importante que tenhamos consciência de que ser imprescindível não é uma qualidade individual, mas uma ilusão construída sobre a atomização do trabalho. Quando um trabalhador se julga acima da luta comum, esquece que os direitos que hoje considera adquiridos como sejam férias, horário de trabalho, proteção social ou a contratação coletiva, entre outros direitos; não nasceram do mérito individual, mas da união e da luta de muitos que, ousaram fazer greve, manifestar-se, exigir respeito, exigir dignidade. 

A greve revela, com a nitidez de um espelho, que ninguém é essencial sozinho, mas todos se tornam essenciais quando agem em conjunto.

Os trabalhadores, os que têm consciência de classe, estão de greve.

Os que se julgam imprescindíveis e interiorizaram que são colaboradores ao invés de trabalhadores e, por esse motivo, não fizeram greve. Serão vítimas da voragem neoliberal e, sobretudo, dispensáveis se o Pacote Laboral não for derrotado, tal como todos os outros. 

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 11 de dezembro de 2025


quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

a retórica de Raquel Varela

imagem retirada da internet

Há figuras, na paisagem política portuguesa, que procuram ocupar um espaço de rutura com aquilo que, muitas vezes abusivamente, se designa por esquerda. Alguns fazem-no pela radicalidade do gesto, outros pela força da indignação, outros ainda pela necessidade de aparecer onde a esquerda institucional parece oscilar, outros por razões que a razão desconhece, mas que se adivinha, e, Raquel Varela é um desses casos singulares. 


Raquel Varela é uma académica de mérito reconhecido, com presença mediática constante, até há algum tempo. Esta personalidade constrói um discurso que, aparentemente, se apresenta como diferente de tudo o que existe, e que, por isso mesmo, reclama para si a autenticidade que faltaria aos demais, embora, sem grande esforço de memória, encontremos paralelismos entre Raquel Varela e o discurso de afirmação alternativa de formações partidárias da chamada esquerda que pouco, ou nada, vieram acrescentar à luta por transformações com impacto na vida do povo e dos trabalhadores portugueses.

A sua crítica ao PS, ao BE, ao Livre e ao PCP, na sequência do debate entre António Filipe e Gouveia e Melo, parte do seguinte pressuposto: 

- a esquerda portuguesa teria abandonado o horizonte transformador, acomodando-se ao Estado, ao compromisso europeu e aos limites do possível. Não está totalmente errada nessa constatação, pois o PS há muito se converteu à terceira via e o BE assumiu-se como social-democrata civilizacional, mas o que Raquel Varela propõe em alternativa não é uma renovação do pensamento de esquerda, é um regresso a um passado distante, ao contexto histórico e ao que se lhe seguiu.
Para Raquel Varela a história parece existir apenas como argumento moral, por outro lado esta sua crítica não assenta bem ao PCP, embora tenha sido este o Partido que foi alvo no texto que publicou a propósito de um debate sobre as presidenciais entre Gouveia e Melo e António Filipe.

A retórica eco socialista que reivindica, seja lá isso o que for, procura mais distinguir do que construir. E é nessa distinção, muitas vezes feita pela negativa, que se esboça algo que se assemelha a uma nova força política partidária. Não organizada, não formalizada, mas insinuada. A génese das formações partidárias, afinal, começa quase sempre assim: primeiro a narrativa, depois o sujeito que a criou. E não seria a primeira vez que a política portuguesa assistia a isto.

O texto que publicou sobre o debate presidencial confirma essa deriva. Em vez de análise, temos acusação. Em vez de crítica, um moralismo inflamado que rejeita tudo o que não se alinhe com um internacionalismo revolucionário de início do século XX, como se a realidade geopolítica do nosso tempo não fosse incomparavelmente mais complexa do que a Europa de 1915, ou seja, o que foi acordado na pequena vila suíça de Zimmerwald terá sido o mais adequado para o contexto da época, mas os contextos alteram-se e com eles as estratégias e os instrumentos.

Para Raquel Varela, O “Estado”, esse monstro que ela descreve, é sempre instrumento da dominação, nunca da coesão, nunca da proteção, nunca da soberania democrática. É uma leitura que pode seduzir pela forma, mas falha pela ausência de mundo. Eu também sou utópico, mas um passo de cada vez é o mais avisado.

Quando afirma desejar “a derrota da nossa nação pela vida do nosso povo”, a frase brilha enquanto retórica, mas treme enquanto política. A nação não é apenas uma invenção da burguesia, e mesmo que o tenha sido, a nação é também o lugar concreto onde se disputa trabalho, direitos, igualdade, recursos, futuro. A sua dissolução não liberta os trabalhadores, entrega-os a poderes mais opacos, menos controláveis, mais brutais.

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O PCP, que surge como alvo preferencial, não é apenas criticado a autora parece interessada em lhe retirar legitimidade. Tudo o que nele não corresponde ao modelo revolucionário pré estalinista é visto como desvio, rendição, cedência. Mas a história, da resistência antifascista ao papel social que desempenhou durante décadas, não cabe em duas linhas altivas de reprovação. E António Filipe, que não está acima da crítica, tampouco merece ser tratado como cúmplice de um militarismo que não partilha. António Filipe é um defensor da paz, mas a Raquel Varela necessitava de uma (auto)justificação, ninguém lha pediu, mas serviu-lhe para anunciar que não votaria em António Filipe.

É verdade que a esquerda portuguesa vive um tempo de esvaziamento eleitoral, mas não será com contributos como o da Raquel Varela que se conseguirá que a esquerda tenha a expressão eleitoral que já teve, influência social nunca a deixou de ter.

Raquel Varela fala e escreve com força, mas essa força corre o risco de se transformar apenas em gesto. E o gesto, sem enraizamento, sem programa, sem construção coletiva, não passa de impulso, um impulso com propósito, neste caso o propósito foi tentar descredibilizar o candidato António Filipe que apenas se referiu ao texto constitucional quando falou sobre defesa nacional. A este propósito, também os tenho, gostaria de saber o que pensa Raquel Varela sobre a luta do povo palestiniano na defesa da sua pátria.

A verdadeira alternativa à esquerda não se fará contra o Estado ou contra a nação, mas através deles.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 3 de dezembro de 2025


segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Malak Mattar - a abrir dezembro

imagem retirada da internet

Malak Mattar, pintora palestiniana nascida em Gaza, transformou a sua arte num lugar de respiração num território onde o ar é constantemente roubado. A cada tela, a cada figura feminina que emerge com olhos grandes e luminosos, ela celebra a vida apesar do cerco, da ocupação colonial e do apartheid. O seu trabalho é um gesto de afirmação num mundo que insiste em negar a existência do seu povo. Na sua obra a resistência é tornada cor e os silêncios em gritos de denúncia. Nas suas pinturas há uma espécie de permanência obstinada, prova de que a identidade palestiniana não se apaga e que a vontade de um povo não se extingue nas ruínas da sua cidade natal.



As mulheres palestinianas sempre estiveram no centro desta resistência, não apenas como vítimas da violência colonial, mas como agentes da sua própria história. Elas sustentam comunidades, protegem memórias, educam os filhos para reconhecerem a injustiça e levantarem a cabeça. São presença nos protestos, nas cozinhas, nos hospitais de campanha, nas escolas improvisadas, nas casas que renascem após cada bombardeamento. Malak Mattar representa-as: firmes, dignas, inteiras, mesmo quando o mundo as quer quebradas.

a colheita da azeitona - Malak Mattar

E talvez seja esta a força maior da sua obra, ou seja, mostrar que, na Palestina, a cultura é mais do que herança, é continuidade. As mulheres transmitem canções, sabores, gestos, histórias de raízes profundas, projetam no futuro aquilo que a ocupação tenta arrancar ao presente. A pintura de Malak Mattar prolonga esse fio antigo, levando-o para além das fronteiras impostas, declarando ao mundo que a identidade palestiniana resiste porque vive, e vive porque é passada de mão em mão, de mãe para filha. Na obra de Malak Mattar, a arte torna-se o gesto que preserva a herança cultural e, ao mesmo tempo, afirma a luta contra a ocupação colonial e o genocídio.


domingo, 30 de novembro de 2025

quando a mentira viral ataca a Escola Pública

Quando um boato se transforma num discurso político, o problema já não é apenas a mentira, é o efeito que ela produz num país cada vez mais exposto às simplificações tóxicas do TikTok e outras plataformas ditas sociais.

Rita Matias divulgou um vídeo nas redes sociais em que afirma ter recebido, de um encarregado de educação, a informação de que a Escola Secundária Gil Vicente teria proibido que a “Associação de Estudantes organizasse uma festa de Natal” e que proibiria “qualquer referência à tradição cristã”.

No vídeo, caracterizou a alegada decisão como “um insulto para a nossa sociedade ocidental, para a forma como nos organizamos, para as nossas tradições, para a nossa história” e enquadrou o episódio num cenário mais amplo de “autofagia” cultural.

A deputada associou esse suposto caso a movimentos na Europa, referindo protestos na Alemanha e “atentados que tiram a vida a europeus”, usando essas referências difusas para sustentar a ideia de que “quem chega de fora não quer celebrar o Natal”.

Porém, a direção da Escola Secundária Gil Vicente, através de um comunicado assinado pela Diretora e pela Associação de Estudantes, desmentiu totalmente a história e garantiu que a informação difundida por Rita Matias “é falsa”. Não existiu qualquer proibição da festa de Natal, nem qualquer restrição a celebrações próprias da época.

A escola afirmou ainda que “mantém o compromisso com a seriedade e o respeito pela comunidade” e desejou “celebrações felizes, com Amor e Verdade”.

A imprensa e os meios de verificação classificaram a alegação como falsa: não existe qualquer evidência de que a escola tenha proibido uma festa ou referências ao Natal, nem que a Associação de Estudantes tenha alguma vez recebido uma ordem nesse sentido. O caso assenta numa denúncia não documentada de um encarregado de educação cujo nome, circunstâncias e alegados factos nunca foram tornados públicos.

A polémica insere-se, contudo, num contexto mais amplo de discursos políticos que procuram associar a diversidade cultural e religiosa a uma ameaça às tradições nacionais. Mais uma vez, a deputada utiliza um rumor, um "ouvi dizer", para pôr em causa a convivência democrática e a diversidade cultural do país, características históricas da sociedade portuguesa, não invenções recentes.

A condição de deputada confere-lhe um papel público com consequências, e não é irrelevante que, pela repetição de insinuações, polarize e alimente a desconfiança, com o único propósito de reforçar a influência política da sua organização partidária, instrumentalizando o medo identitário.

Há, neste caso e noutros, um problema de responsabilidade pública: quando uma figura eleita mobiliza a mentira como instrumento político, tal atuação deve ser escrutinada e pode, como já aconteceu, ser passível de queixa-crime.

Outra questão relevante é a credibilidade da própria autora das declarações. As alegações não passaram no crivo mínimo da verificação factual, e o que está em causa é a utilização frequente de narrativas com forte carga emocional, independentemente da verdade, que penetram com facilidade numa população que, durante anos, foi alvo de um processo de empobrecimento cívico, cultural e informacional.

Os mitos construídos sobre a mentira, sobretudo quando apelam a afetos, receios e símbolos identitários, exigem um escrutínio firme. E para que esse escrutínio seja possível, é necessário conhecimento. Não se deixem desarmar.


Escola Secundária Gil Vicente: um exemplo de boas práticas

Convém, por isso, recordar quem é realmente a Escola Secundária Gil Vicente — que tem sido notícia nos últimos anos pelas melhores razões.

Situada numa das zonas mais diversas de Lisboa, a escola acolhe alunos de mais de 60 nacionalidades, convivendo diariamente numa pluralidade linguística e cultural que, longe de ser um obstáculo, se constitui como uma riqueza. A direção e o corpo docente têm construído práticas consistentes de inclusão, como as turmas de Português Língua de Acolhimento, fundamentais para a integração de estudantes recém-chegados que ainda não dominam a língua.

A escola tornou-se também referência por projetos que articulam educação, comunidade e sustentabilidade. Um dos mais significativos foi a plantação de centenas de árvores e a criação de uma horta pedagógica, em parceria com associações locais, envolvendo jovens de várias origens e capacidades. Estes projetos transformam o espaço escolar: de recinto fechado para transmissões de conteúdos, num território comum, vivido, cuidado, cultivado.

Importa ainda destacar a abertura do espaço escolar à comunidade. A escola tem participado em iniciativas municipais que permitem a utilização dos recreios e espaços escolares como locais de encontro para crianças e famílias fora do horário letivo, reforçando a sua vocação de espaço público ao serviço da sociedade onde está inserida. 

Tudo isto demonstra que a Escola Gil Vicente é, na prática, um exemplo de convivência multicultural bem-sucedida, de inovação pedagógica, de responsabilidade cívica e de práticas interculturais.

Por isso mesmo, quando se mobiliza uma mentira para atacar esta escola, ataca-se também o valor mais profundo da educação pública: a capacidade de construir comunidade, de acolher a diversidade e de formar cidadãos livres.

Em Portugal a Gil Vicente é apenas um de muitos exemplos da Escola Pública de Qualidade e para todos.


Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 29 de novembro de 2025


quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Abril e não novembro

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As tentativas de rescrição da história não são um fenómeno da atualidade, nem derivam diretamente das infindas possibilidades da Inteligência Artificial ou, da replicação de opinião não sustentada, nas redes sociais.

O cinema, a televisão e, ainda antes, a comunicação social escrita, foram (e são) suportes para a criação de narrativas que, ancoradas, em acontecimentos reais nem sempre correspondem à realidade factual.

Recentemente acabei de ler do livro “A Linguagem Secreta do Cinema”, de Jean-Claude Carrière, um reconhecido argumentista e cinéfilo francês. A leitura, da qual darei mais destaque num outro suporte, foi enriquecedora pois trata-se de uma personalidade que não só domina a “linguagem” como conheceu por dentro a indústria cinematográfica. Não sendo uma novidade esta experiência e as aprendizagens que daí decorreram permitiram-me consolidar uma ideia sobre a qual já tinha opinião formada e que hoje partilho com os leitores da Sala de Espera: O cinema muitas vezes reescreve, simplifica, higieniza ou romantiza acontecimentos e processos sociais que foram tudo menos limpos. Algumas produtoras especializaram-se nessa arte subtil da indução narrativa criando versões épicas de conflitos, apagando contradições, transformando derrotas em vitórias morais ou convertendo dramas coloniais em aventuras redentoras. 

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A forma como a câmara se posiciona, o herói que escolhe, o inimigo que fabrica é, bastas vezes, mais do que garantir sucesso de bilheteira, vender uma visão do mundo muitas vezes distante da verdade histórica. Algumas das narrativas hollywoodescas estão aí para o provar, não só, mas também.   

Como certamente concluíram não se trata de nenhuma novidade e muito menos de uma descoberta assombrosa. Os leitores que por aqui estão terão consciência disto, mesmo que como eu, não tenham experiência ou conhecimentos aprofundados sobre a sétima arte. As narrativas cinematográficas moldam estados de perceção que nos preparam para aceitar a ficção como se fosse realidade. 


Em Portugal temos uma variedade de construções míticas que foram fazendo fé como realidades, mas que não passam disso mesmo: efabulações. A própria fundamentação da criação do reino de Portugal está ligada a uma dessas lendas, o “Milagre de Ourique”.

Hoje (ontem) o calendário diz-nos que é o vigésimo quinto dia do mês de novembro e alguns cidadãos procuram celebrar o cinquentenário desta data como um acontecimento digno de registo na história recente do nosso país, chegando mesmo a conferir mais importância a este dia do que ao dia fundacional da democracia portuguesa: o dia 25 de Abril de 1974.

Juízos e opiniões há muitos, mas, tal como o algodão, os factos não enganam. E, vou apenas recorrer a alguns que demonstram, de forma clara, que os acontecimentos de há cinquenta anos não sustentam as narrativas da direita, nem da extrema-direita, ou seja, dos saudosistas de um regime torcionário:  i) não houve alterações na composição do VI Governo Provisório liderado pelo Almirante Pinheiro de Azevedo. O Governo do dia 24 de novembro manteve-se em funções no dia 26; ii) o Presidente da República não foi deposto; a Assembleia Constituinte continuou em funcionamento e aprovou a CRP no dia 2 de Abril de 1976; iii) a CRP consagrou as conquistas da Revolução de Abril de 1974; iv) a CRP foi aprovada com uma larga maioria, mas poderia ter sido apenas aprovada por maioria simples. Não houve unanimidade devido ao voto contra do então CDS.

Os acontecimentos do dia 25 de novembro de 1975 são, no essencial, de ordem militar não tendo havido, ao contrário do dia 25 de Abril de 1974 mobilização popular. Os cidadãos ficaram expetantes e não participaram. Foi um dia tristonho que contrastou com a alegria e aura de felicidade que pairou sobre os portugueses no dia 25 de Abril de 1974 e nos dias que se lhe seguiram.

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O 25 de novembro de 1975 tem, contudo, um cariz contrarrevolucionário, no sentido preciso com que o termo é usado na historiografia, isto é, de travar o aprofundamento da revolução. Os protagonistas militares pertenciam a um grupo, dito, de moderados cujo propósito era a liquidação do papel do MFA, e conseguiram-no com o afastamento e prisão de muitos dos oficiais do MFA. O movimento revolucionário sofreu um duro golpe, mas estas alterações não foram suficientes para travar o ímpeto transformador que se tinha impregnado no povo e nos trabalhadores portugueses o que garantiu que as conquistas de Abril, como já referi, fossem consagradas na CRP.

Se o episódio de 25 de novembro de 1975 travou setores revolucionários que queriam aprofundar o processo socialista, também é verdade que não inverteu de imediato o rumo iniciado a 25 de Abril. Pelo contrário, a força popular acumulada ao longo de mais de um ano de mobilização é o que explica que as conquistas sociais não tenham sido desmanteladas pelas autoridades civis ou militares que emergiram posteriormente.

As primeiras eleições legislativas, realizadas em 25 de abril de 1976, foram o momento de “institucionalizar” a democracia representativa. A correlação de forças foi clara: o PS venceu, seguido muito de perto pelo PPD/PSD, com o PCP a afirmar-se como terceira força e a extrema-direita a não ter expressão eleitoral. A direita, organizada sobretudo no CDS, teve uma fraca representação institucional. Este quadro não corresponde à narrativa de uma alegada vitória da direita em novembro de 1975. Não existe qualquer evidência histórica que sustente essa leitura. Se alguém venceu politicamente foram as forças que defendiam o socialismo democrático, a economia mista, os direitos laborais e sociais conquistados desde 1974.

Pouco depois, em 27 de junho de 1976, tiveram lugar as primeiras eleições presidenciais. A vitória do general Ramalho Eanes, apoiado sobretudo pelo PS e pelo CDS, mas com uma imagem popular de uma personalidade equilibrada. Eanes não sendo um revolucionário, não era um saudosista dos tempos do Estado Novo.

A partir daqui, porém, começa um processo que importa compreender com detalhe. A Constituição de 1976 consagra princípios que resultam diretamente do ímpeto transformador do povo português em 1974 e 1975: o caminho para o socialismo, a irreversibilidade das nacionalizações, a reforma agrária, os direitos laborais avançados, o papel das comissões de trabalhadores, o sistema de saúde universal, a educação como direito e dever fundamental. Mas a partir do início dos anos 1980, com a revisão constitucional de 1982 e sobretudo com a de 1989, inicia-se o longo processo de erosão das conquistas de Abril.

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Este desmantelamento não foi súbito: foi gradual, negociado externamente e legitimado institucionalmente pelos órgãos de soberania nacional. Começou pela retirada do poder político do MFA, que ainda tinha presença constitucional, continuou com a eliminação do Conselho da Revolução, prosseguiu com a liberalização económica e culminou nas privatizações em massa que inverteram a lógica da economia mista. As revisões constitucionais transformaram a CRP de um texto orgânico, coerente e ousado, numa peça adaptada aos ventos ideológicos dominantes no espaço europeu e atlântico. É a partir daí que Portugal entra, definitivamente, na rota neoliberal que marcou as décadas seguintes. Rota essa que hoje nos coloca, de novo, perante desigualdades, precariedade e fragilização dos serviços públicos.

E é por isso que revisitar esta data exige rigor e memória crítica. Nenhuma narrativa épica, nenhum revisionismo de ocasião e nenhuma simplificação jornalística consegue apagar o essencial: Portugal tornou-se uma democracia graças ao 25 de Abril; consolidou-a graças à participação popular e às conquistas sociais de 1974–1976, e, só anos mais tarde, muito depois dos acontecimentos de novembro de 1975, se iniciou o processo político que progressivamente amputou da CRP e da vida dos portugueses algumas das conquistas de Abril. A História é muito mais complexa do que os enredos fabricados. E quando a narrativa se sobrepõe ao real, o melhor antídoto continua a ser o mais simples: fatos, memória e espírito crítico.

Ponta Delgada, 25 de novembro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 26 de novembro de 1025

terça-feira, 25 de novembro de 2025

o povo ficou em casa

do arquivo pessoal - Aníbal C. Pires



Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.










(... ) Juízos e opiniões há muitos, mas, tal como o algodão, os factos não enganam. E, vou apenas recorrer a alguns que demonstram, de forma clara, que os acontecimentos de há cinquenta anos não sustentam as narrativas da direita, nem da extrema-direita, ou seja, dos saudosistas de um regime torcionário:  i) não houve alterações na composição do VI Governo Provisório liderado pelo Almirante Pinheiro de Azevedo. O Governo do dia 24 de novembro manteve-se em funções no dia 26; ii) o Presidente da República não foi deposto; a Assembleia Constituinte continuou em funcionamento e aprovou a CRP no dia 2 de Abril de 1976; iii) a CRP consagrou as conquistas da Revolução de Abril de 1974; iv) a CRP foi aprovada com uma larga maioria, mas poderia ter sido apenas aprovada por maioria simples. Não houve unanimidade devido ao voto contra do então CDS.

Os acontecimentos do dia 25 de novembro de 1975 são, no essencial, de ordem militar não tendo havido, ao contrário do dia 25 de Abril de 1974 mobilização popular. Os cidadãos ficaram expetantes e não participaram. Foi um dia tristonho que contrastou com a alegria e aura de felicidade que pairou sobre os portugueses no dia 25 de Abril de 1974 e nos dias que se lhe seguiram. (...)


a gramática do cinema

Ler A Linguagem Secreta do Cinema, de Jean-Claude Carrière, foi como se tivesse entrado numa oficina silenciosa onde as imagens induzem estados de alma, mas também nos devem obrigar a pensar, descodificando o que vemos, para isso é necessário conhecer a gramática da sétima arte. Carrière desmonta o mecanismo do olhar cinematográfico com a elegância de quem conhece cada engrenagem e cada sombra. Mostra-nos que o cinema não é apenas uma arte do visível. O cinema é, sobretudo, uma forma de organizar o mundo, de sugerir sentidos, de impor ritmos ao tempo e à memória. Há, no modo como um plano se aproxima ou se afasta, uma gramática de sedução e de poder, uma forma de orientar a atenção e de moldar a interpretação.

Mas Carrière lembra-nos também, mesmo quando o diz nas entrelinhas, que todo o cinema conta histórias e que toda a história contada implica escolhas. E é aqui que a reflexão ganha outra densidade. Porque o cinema, especialmente o que domina o mercado global, nem sempre se limita a narrar. O cinema não poucas vezes reescreve, simplifica, higieniza ou romantiza acontecimentos e processos sociais que foram tudo menos limpos. Hollywood, não toda, mas uma parte significativa, especializou-se nessa arte subtil da indução narrativa, criando versões épicas de conflitos, apagando contradições, transformando derrotas em vitórias morais ou convertendo dramas coloniais em aventuras redentoras. A forma como a câmara se posiciona, o herói que escolhe, o inimigo que fabrica, tudo isto rende mais do que a bilheteira, rende uma visão distorcida do mundo.

Por isso este livro é tão pertinente. Ele recorda-nos que o cinema é uma linguagem com força suficiente para se infiltrar na imaginação coletiva e, a partir daí, influenciar a perceção do passado e a leitura do presente. A cada plano montado, uma hipótese de verdade é sugerida, a cada elipse, uma zona de sombra é criada. Carrière não nos oferece receitas, mas um alerta: compreender o cinema é aprender a desconfiar da facilidade das imagens, da doçura com que nos oferecem certezas. É um convite a ver com mais atenção, e, talvez, a resistir melhor à sedução das narrativas que não querem apenas entreter, mas moldar o que pensamos ser real e, assim, criar realidades paralelas.


Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 25 de novembro de 2025


domingo, 16 de novembro de 2025

Ornamento de cabeça, ou poesia.

foto de Madalena Pires
Há livros que nascem como objetos culturais; outros, como testemunhos vivos. O Lenço de Cabeça, de José Marcelino Kongo, pertence a essa segunda linhagem, a dos livros que guardam memória, identidade e dignidade numa página de papel e num gesto de olhar. Editado pela Letras Lavadas Edições, este trabalho fotográfico e poético é uma homenagem às mulheres angolanas e ao simbolismo que carregam, visível no lenço que tantas vezes reveste a cabeça como coroa, escudo, linguagem ou território afetivo. E não…  não é um simples ornamento; é um mapa íntimo da história e da resistência no feminino.

José Marcelino Kongo vive em Portugal há meio século, exatamente o mesmo tempo que dura a independência de Angola, celebrada a 11 de novembro. Este paralelismo não é mero acaso temporal, há uma afinidade biográfica, cultural e emocional que o atravessa.

Radicado nos Açores, o autor construiu o seu percurso académico como investigador na área da Biotecnologia, doutorado pela Universidade Católica Portuguesa. Mas o rigor científico nunca anulou o olhar sensível, poético e atento às raízes. O Lenço de Cabeça é prova disso: apresenta-se como documento visual e poético que ecoa como uma declaração de pertença.

foto de Madalena Pires

Conheço o Marcelino desde o início deste século e guardo, com particular estima, o momento em que li, pela primeira vez um poema em público, durante a apresentação do seu livro Notícias da Lua. Talvez por isso, cada novo trabalho seu me soe sempre a reencontro. Reencontro com a palavra, com a memória e com o gesto artístico que nasce do coração e regressa ao povo.

Celebrar cinquenta anos de independência é também resgatar o rosto feminino dessa liberdade: mães, filhas, avós, estudantes, vendedoras, camponesas, artistas, combatentes, tantas vezes invisibilizadas pela história, mas imprescindíveis à humanidade.

Este livro não é apenas sobre um acessório feminino: é sobre as mulheres angolanas, os rostos que retrata, os corpos que o sustentam e a vida que, apesar de tantas cicatrizes, continua a erguer-se, com dignidade, beleza e futuro.



Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 16 de novembro de 2025